Maiquele Romero
Desigualdades e preconceitos seguem afastando parte da população dos serviços de saúde
O Outubro Rosa é um movimento mundial de conscientização sobre o câncer de mama e do colo do útero, e busca incentivar o diagnóstico precoce e o autocuidado. Desde que começou a ser veiculada no Brasil, em 2002, a campanha tem contribuído para salvar vidas e promover o acesso à informação sobre a saúde. No entanto, para a população LGBTQIAPN+, o direito ao cuidado ainda é atravessado por barreiras e preconceitos.
Mulheres cis lésbicas e bissexuais, homens trans e pessoas não binárias com vulva enfrentam, cotidianamente, barreiras para acessar atendimentos ginecológicos e realizar exames preventivos. Embora o direito à saúde seja garantido pela Constituição, o preconceito, o despreparo profissional e a falta de políticas públicas inclusivas tornam o cuidado desigual. O constrangimento muitas vezes começa com a presunção dos médicos que os pacientes são cis e heterossexuais, mas também podem escalar para atos de homofobia, transfobia e negligência médica. Em muitos casos, pessoas LGBTQIAPN+ são, inclusive, orientadas por profissionais a não realizarem exames como o Papanicolau, sob a justificativa equivocada de que não estariam em risco. O resultado é um cenário de vulnerabilidade e negligência.
Desigualdade no cuidado e medo do consultório
O 1º Lesbocenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil (2023) revelou que 24,9% das mulheres lésbicas já sofreram violência ou discriminação em atendimentos ginecológicos, e 72,9% relataram receio ou constrangimento em revelar sua orientação sexual durante consultas médicas. Dados anteriores, do Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas – Promoção da Equidade e da Integralidade (2006), já apontavam que apenas 66,7% das lésbicas e bissexuais realizavam o exame preventivo do câncer do colo do útero, frente a 89,7% das mulheres heterossexuais.
Entre as pessoas trans, o cenário também é crítico. Uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), realizada em 2023 com mais de 1.100 entrevistados, revelou que 94% das pessoas trans e travestis já sofreram violência ou discriminação no atendimento à saúde, 62% afirmaram evitar buscar serviços por medo de preconceito e 36% disseram já ter sido recusadas em atendimentos. Entre os homens trans, levantamento do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) mostra que 28,12% tiveram sua identidade de gênero desrespeitada durante a gestação.
O jornalista Gabriel Simões, homem trans, reconhece que o medo do constrangimento ainda é uma barreira. “Sempre que tento buscar atendimento, me sinto constrangido com a ideia de estar em um consultório em que os olhares pouco serão acolhedores comigo”, conta. Ele afirma que, no sistema público, sente um cuidado mais integral: “No SUS, o atendimento parece ser muito mais multidisciplinar. Os profissionais querem saber para além das questões hormonais, perguntam sobre minha saúde mental, sobre meu relacionamento e se eu tenho alguma queixa relacionada à saúde”. Mesmo assim, admite que a dificuldade de acessibilidade às consultas particulares e a falta de acolhimento nos consultórios médicos tem o afastado do cuidado com a saúde ginecológica.
Formação médica ainda excludente
A médica ginecologista e sexóloga Débora Brito reconhece que, apesar dos avanços trazidos pelo Outubro Rosa, o sistema de saúde ainda falha em acolher toda a diversidade de corpos e identidades. “Falta ampliarmos o sentido de cuidado e prevenção para além do corpo biológico, incluindo as dimensões psicológica e social da saúde de mulheres, homens trans e outras pessoas transmasculinas”, afirma.
Segundo ela, o despreparo tem raízes profundas. “Nossa formação como profissionais de saúde ainda é fortemente centrada em um modelo cisheteronormativo, logo, muitos profissionais não aprendem a lidar com a diversidade sexual e de gênero”. Além disso, há o desconforto diante do que não é familiar, o medo de errar e, por vezes, o preconceito implícito”.
A ginecologista acredita que o caminho passa por práticas simples, mas transformadoras: “Quando adotamos uma postura humanizada, usamos linguagem inclusiva e perguntamos o que não sabemos ao invés de pressupor, começamos a transformar nossos consultórios em espaços de confiança”.
Dados evidenciam desigualdade estrutural
A tese de doutorado do médico Milton Crenitte, defendida na Faculdade de Medicina da USP, mostra que pessoas LGBTQIAPN+ acima de 50 anos têm quase o dobro de difuldade no acesso à saúde no Brasil em comparação com a população cisgênero e heterossexual. O estudo também aponta maior prevalência de depressão e menor realização de exames preventivos, como os de câncer de mama, cólon e colo uterino entre a população LGBTQIAPN+.
Esses dados revelam que o problema vai além da falta de atendimento: trata-se de um sistema que ainda não reconhece plenamente a diversidade de quem o compõe. “Ter respeito pela diversidade sexual e de gênero é uma questão de direitos humanos, e não um ‘algo a mais’ que se oferta”, reforça Débora Brito. Segundo a profissional, é fundamental incluir conteúdos sobre diversidade sexual e de gênero na formação médica e na educação permanente das equipes de saúde, no atendimento público e privado.
Políticas públicas ainda em atraso
A Política Nacional de Saúde Integral LGBT, publicada em 2013, foi um marco na tentativa de garantir o direito ao atendimento livre de discriminação. Mas, em mais de uma década, nunca foi atualizada. Somente em setembro deste ano o governo federal retomou o Comitê Técnico Nacional de Saúde LGBTIA+, extinto em 2019, com o objetivo de ampliar direitos e fortalecer o atendimento humanizado no SUS.
No cenário internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também tem buscado avanços. A entidade removeu o “transtorno de identidade de gênero” de sua classificação de doenças (CID-11), substituindo-o por “incongruência de gênero”, agora incluída na área de sexualidade, e não mais em transtornos mentais. A mudança reconhece a transgeneridade como parte da diversidade humana, mas, no Brasil, só entrará em vigor em 2027.
A própria OMS define a saúde sexual como essencial para o bem-estar individual e coletivo. Para a organização, isso requer acesso a informações de qualidade, cuidados de saúde seguros e acessíveis e um ambiente livre de coerção, discriminação e violência.
O cuidado precisa ser plural
A professora Julia Carrara, mulher cis lésbica, se reconhece parcialmente nas mensagens do Outubro Rosa. “Apesar de me contemplar como mulher e auxiliar na busca de cuidados específicos, não vejo falarem tanto com mulheres lésbicas”, diz. Embora não tenha vivido situações explícitas de preconceito, ela relata desconfortos sutis, como a presunção de que ela é uma mulher heterossexual, como se isso fosse a regra. “Sempre tem alguma olhada mais ‘demorada’, parecendo que precisam digerir o assunto [sua sexualidade]”. Para Julia, falta preparo e vontade de aprender: “Profissionais que já estão na área há mais tempo muitas vezes não sentem que é necessário conhecer nossas vivências, o que causa desamparo e desconforto”.
A falta de preparo dos profissionais também afeta Gabriel. “O constrangimento começa a partir do momento em que sinto a necessidade de sinalizar o médico de que sou trans e, às vezes, o profissional sequer sabe o que isso significa, ou qual seria a relevância disso. Já me ocorreu, por exemplo, de tirar a camiseta para o médico me auscultar, e sentir alguns olhares incômodos para a cicatriz da mastectomia” revela o jornalista.
Ao fim, as campanhas de conscientização e prevenção aos problemas de saúde seguem sendo importantes, mas também um lembrete de que o cuidado deve ser plural. Garantir que todas as pessoas, independentemente de gênero ou orientação sexual, possam realizar exames preventivos e acompanhar sua saúde sem medo é parte fundamental do exercício do direito à saúde. Como resume Débora Brito, “cuidar é reconhecer que cada corpo carrega uma história – biológica, psicológica e social – e que a diferença não é exceção, mas regra”.
Edição: Bernardo Maia
Editora-chefe responsável: Rodrigo Junior