Thyffanny Ellen
Hobbies que se transformam em autocuidado e renda
Nos últimos meses, vídeos de “achadinhos” de maquiagem se tornaram rotina nas redes sociais. São iluminadores “inspirados” em marcas caras internacionais como a Rare Beauty, bases com embalagens semelhantes às da Fenty, glosses que imitam marcas brasileiras, como a da influenciadora Franciny Ehlke, e séruns que prometem resultados milagrosos. Todos vendidos por preços muito abaixo dos originais, muitas vezes sem selo de autenticidade, sem registro sanitário e sem qualquer garantia mínima de segurança.
O fenômeno vai além da busca por produtos baratos. Ele expõe a pressão por pertencimento que atravessa as estéticas virais e o consumo impulsionado por influenciadores. Para um público majoritariamente jovem, acompanhar tendências de beleza passou a integrar a identidade digital, e os cosméticos falsificados acabam funcionando como um “passaporte” simbólico para esse universo — ainda que carreguem riscos à saúde.
Nas plataformas de venda rápida, como TikTok Shop e Mercado Livre, a oferta cresce em ritmo acelerado. Embalagens que imitam com precisão itens de luxo dificultam a distinção entre o original e o falso. O preço é o principal atrativo: produtos que custariam cerca de R$ 150 aparecem à venda por valores entre R$ 30 e R$ 50. A popularização se intensifica com vídeos de “antes e depois” e testes feitos por influenciadores, muitas vezes sem qualquer menção à ausência de regulamentação.
Roupas e acessórios produzidos e comercializados por Nallany. Fotos: Arquivo Pessoal
A artista descreve esse reencontro com as artes manuais como uma espécie de reorganização interna, até mesmo para ajudar na rotina com o curso de arquitetura e urbanismo . “Isso me ajudou muito a distrair, desfocar do luto e focar mais em mim. Foi muito terapêutico”. Quando entrou em outro relacionamento e terminou de novo, repetiu o movimento: “Comecei a bordar. Também trabalho com isso hoje”. A cada novo hobby que vira ofício, ela sente o mesmo prazer inicial: “Eu amo aprender coisas manuais. É uma forma minha de me dar carinho”.
Esse impulso de fazer as próprias coisas por necessidade, prazer ou autonomia, aparece cada vez mais forte na rotina de jovens como Nallany. E, segundo a educadora financeira Átila Lima, não é um fenômeno novo, mas se intensifica conforme o custo de vida sobe e a lógica de consumo muda. “A gente vê esse movimento há alguns anos, especialmente nas redes e no YouTube. Tem dois vieses principais: o lado terapêutico, de aprender uma atividade nova, e o lado da economia doméstica, que pesa muito hoje. Com o aumento do custo de vida, fazer algumas coisas por conta própria vira uma decisão de orçamento também”.
Mas Átila insiste que reduzir tudo a “economizar” é incompleto e, às vezes, perigoso. Para ela, existe uma leitura equivocada de que autonomia financeira é sempre sobre cortar gastos, quando muitas mulheres já começam em desvantagem histórica. “A mulher gasta mais, não porque compra mais por vaidade, mas porque o pacote de cuidados que a sociedade exige dela é maior. Cabelo, unha, aparência, se vestir bem…”. A solução, então, nem sempre está em diminuir: “Em alguns momentos, economizar não resolve. É preciso fazer mais dinheiro, desenvolver habilidades, se profissionalizar”.
Ainda assim, o “faça você mesma” cresce como narrativa pública, muitas vezes romantizado. Átila alerta para isso. “O empreender de si e o fazer tudo sozinho foram normalizados. Só que isso pode trazer sobrecarga física e emocional. Assumir mil habilidades ao mesmo tempo não é sustentável, e a autossuficiência absoluta não existe. A gente vive em sociedade, depende do trabalho do outro”.
Ao mesmo tempo, o movimento abre brechas. Para algumas mulheres, como Nallany, o fazer manual é um respiro possível algo entre renda e terapia. Para outras, vira apenas negócio. E para alguns homens, é um jeito de acessar uma parte da vida que sequer era permitida.
É o caso de Newton Pinheiro, 23, estudante de física, que reencontrou no crochê o que tinha deixado escapar na vida adulta. “Eu sempre fui uma criança muito independente. Tudo eu queria aprender, tudo eu queria saber fazer”, conta. Ele passou pela confeitaria, pela pintura e pelos desenhos, sempre movido pelo mesmo instinto criativo. Quando cresceu, o tempo escorreu junto com essa curiosidade. Então decidiu voltar.
“Eu queria um hobby que me ajudasse a passar o tempo e que despertasse esse lado criativo que eu sempre tive. Não queria obrigação, queria leveza”. Ele achou no crochê exatamente isso: a mistura entre autonomia, prazer e terapia. “Quando eu começo, penso muito em autonomia mesmo. E também numa necessidade de fazer coisas que tenham a minha cara, que eu possa customizar, elaborar. É tanto necessidade quanto prazer”.
Peças de roupa que Newton produziu para si mesmo e para uma amiga. Fotos: Arquivo pessoal
Newton aprendeu como muita gente atualmente aprende: comprou o material, procurou vídeos e seguiu tutoriais. Com o tempo, foi criando suas próprias peças. Ele conta com alegria que uma delas foi um divisor: uma camisa de botões com a estampa em alusão à bandeira do estado de Pernambuco. “Eu queria fazer algo que ninguém tinha feito. Quando finalizei, foi uma sensação indescritível. Pensar que aquilo era só um novelo de linha e virou algo concreto é muito prazeroso”.
Estampa produzida por Newton em homenagem a Pernambuco. Foto: Arquivo pessoal
A história dele abre outra camada do fenômeno. Embora a divisão de tarefas ainda empurre as mulheres para acúmulos, como lembra Átila, homens também têm buscado espaços de autocuidado que não cabiam no molde tradicional. Mas, de acordo com ela, isso acontece de forma desigual. “As mulheres estão se desenvolvendo muito, acessando cursos, técnicas, grupos de troca. Os homens, em muitos casos, não acompanham esse movimento. E isso acaba criando desequilíbrio dentro das famílias, porque recai sobre elas a responsabilidade do cuidado, do dinheiro e, agora, do próprio autocuidado”.
No meio dessas tensões, o “fazer com as próprias mãos” aparece como um ponto de encontro entre as diferentes histórias: para Nallany, é recomeço e renda; para Newton, um caminho de leveza e criatividade; para outras outras mulheres, pode ser estratégia de economia e afirmação; para muitos homens, a chance de acessar um cuidado que nunca lhes foi permitido. Entre cura, expressão e formação de renda, essas práticas se multiplicam sem perder a delicadeza do que nasce no próprio ritmo de cada um. Para Átila, o cuidado está em não transformar essa autonomia em obrigação nem solidão: “A gente precisa naturalizar que está tudo bem depender do outro. Não existe autossuficiência humana. Existe troca”.
Edição: Rodrigo Junior
Editor-executivo responsável: Leo Prado