Maiquele Romero
Prática conhecida como sharenting pode comprometer segurança e bem-estar de crianças e adolescentes
A queda do primeiro dente de leite, uma foto da viagem de férias ou de um momento de alegria com os amigos. Registros das crianças que, há duas décadas, estavam restritos aos álbuns de família ou apenas às memórias dos responsáveis, hoje também ganham espaço nas redes sociais.
Mas há uma linha tênue entre o simples compartilhamento de registros e a exposição excessiva das crianças pelos pais, o chamado sharenting. O termo mescla os termos “share” (compartilhar) e “parenting” (paternidade/maternidade) para definir a prática de pais ou responsáveis legais que compartilham excessivamente conteúdos ou informações sobre seus filhos online. Inocente à primeira vista, a prática pode acarretar muitos prejuízos para essas crianças e adolescentes, sejam eles psicológicos ou relacionados à sua própria segurança.
Foto: Reprodução/RDNE Stock Project
O QUE É SHARENTING, AFINAL?
Nem todo compartilhamento de imagens nas redes sociais configura sharenting. Postar uma foto de um momento com os filhos é uma forma natural de registrar memórias e compartilhá-la com pessoas próximas. Porém, quando a exposição é constante, envolve cenas íntimas ou constrangedoras, esse compartilhamento pode ser considerado sharenting. Além disso, é necessário avaliar também se a publicação possui ou não fins lucrativos e como se dá essa relação econômica: “Se a gente não está falando de alguém que trabalha com as redes sociais, essa exposição precisa estar regulada de uma maneira um pouco diferente”, explica Farah Diniz, advogada especialista internacional em Direito Digital de Crianças e Adolescentes.
Quando o assunto são influencers ou pessoas que trabalham com conteúdo digital envolvendo crianças, a situação muda. “Quem trabalha e lucra com isso, é necessário um alvará judicial. Porque a imagem precisa estar vinculada ao que isso tem a ver com o trabalho, quantas horas e se isso não atrapalha a vida e a rotina dessa criança ou desse adolescente”, esclarece Farah. Ela também reforça que é fundamental diferenciar quando essas pessoas publicam situações comuns e casos que configuram violação e perturbação da vida da criança.
Ainda assim, quase toda exposição está sujeita a riscos, uma vez que, diferente dos álbuns, em que era necessário selecionar a dedo ou receber uma visita em casa para compartilhar aquela lembrança feliz ou imagem engraçada, o alcance das redes é muito maior. Segundo o Statista, em fevereiro de 2025, 5,24 bilhões de pessoas, ou 63,9% da população mundial, eram usuárias de mídias sociais. “A gente tem a ideia de quando a gente está publicando, quem viu foi a vizinha, quem viu foi o vizinho, a família que está longe, mas é muito mais que isso. Muito mais”, reforça Farah.
“MINI INFLUENCERS”
Como exemplo de mensuração do alcance das redes, as filhas da influenciadora Virgínia Fonseca com o cantor Zé Felipe, Maria Alice, de 3 anos, e Maria Flor, de 2, acumulam 210 posts e 6,1 milhões de seguidores em perfil compartilhado entre as duas, mesmo com a conta inativa há um ano. Outra influenciadora, a ex-BBB Viih Tube também criou perfis para os seus filhos, Lua e Ravi, antes mesmo deles nascerem. Em entrevista ao Fantástico, em 2023, quando Lua tinha apenas alguns meses, a influencer e seu marido Eliezer relataram que consideram parar de publicar fotos de Lua nas redes após a criança ser vítima de cyberbullying. No entanto, o perfil segue ativo, hoje com pouco mais de 2,5 milhões de seguidores.
Para além do número de seguidores, um caso notório do alcance dos conteúdos desses “mini influencers” nas redes é o caso #SalvemBelParaMeninas. Em 2020, a hashtag viralizou após internautas acusarem a família da youtuber Isabel Magdalena, 13 anos à época, de forçá-la a participar de vídeos e expô-la a situações de perigo ou vexatórias, apesar da família e da própria Bel negarem as acusações, o caso ganhou repercussão nacional e jurídica.
A capacidade de viralização se manifesta de forma ainda mais forte através de memes. Há 11 anos, Katie Chem gravou e publicou uma reação de sua filha Chloe Chem, de 2 anos, que viralizou e se tornou uma imagem reproduzida até hoje nas redes sociais. Katie diz que se arrepende: "Sinto uma culpa terrível. As pessoas vinham até ela, eram malucas. Tiravam fotos dela", afirmou Katie em entrevista à revista americana People.
Chloe aos dois anos, em meme que viralizou. Foto: Reprodução/Redes Sociais
Os casos de Chloe, Maria Flor, Maria Alice, Lua e Ravi não são isolados. Uma pesquisa intitulada Digital Footprint of Kids (Pegada digital das crianças), realizada em 2017 pela Knowthnet, no Reino Unido, revelou que, em média, pais postam 195 fotos dos filhos por ano, acumulando 1.300 imagens até os cinco anos de idade, e apenas 12% pedem consentimento às crianças.
O QUE DIZ A LEI?
A Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece a proteção dos direitos fundamentais das crianças de forma ampla em todo o mundo. No Brasil, apesar de ainda não haver uma legislação específica sobre a exposição de crianças nas redes, existem alguns instrumentos para proteger crianças e adolescentes, como a própria Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Há também o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regulamenta o tratamento de dados pessoais e, em seu artigo 14, define regras específicas para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, enfatizando que isso deve ocorrer exclusivamente conforme o seu melhor interesse.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4776/2023, que propõe a alteração do ECA para dispor de regras específicas sobre o compartilhamento de imagens por responsáveis nas redes, incluindo o direito ao esquecimento a partir dos 16 anos. Além disso, já há também decisões judiciais condenando exposição exagerada de crianças pelos pais, como um caso registrado no Tribunal de Justiça do Estado do Acre (TJAC), em julho de 2025.
Farah alerta que denúncias podem ser feitas por qualquer pessoa, mas em contextos de pais separados a exposição pode ser usada como violência contra a mãe, configurando um limite tênue. Uma vez que os pais podem utilizar o artifício como uma forma de perseguir judicialmente as mães dos seus filhos, mesmo em contextos em que não há compartilhamento excessivo da imagem das crianças ou adolescentes.
QUAIS OS RISCOS?
A exposição excessiva de crianças e adolescentes na internet pode causar impactos em sua integridade, autoestima, saúde mental, física e até mesmo segurança.
Para a psicóloga e pedagoga especialista em educação socioemocional, Emile Lima, “a ansiedade e a pressão por mostrar sempre um bom desempenho” são algumas das consequências para crianças expostas. O registro as faz sofrer comparações, perder autonomia sobre a própria imagem e apresentar dificuldade em desenvolver uma identidade autêntica, diferente do que se espera das narrativas criadas nos conteúdos. Ela destaca também que os jovens podem sentir vergonha ou invasão da privacidade ao rever as publicações na adolescência, e isso pode afetar, inclusive, a relação com os pais.
Além dos efeitos psicológicos e emocionais, há ainda problemas relacionados à “pegada digital” desses jovens na internet. Claudia Mascarenhas, diretora clínica do Instituto Viva Infância, alerta que esse rastro pode causar, desde situações como bullying e cyberbullying, até perda de oportunidades de emprego, já que algumas empresas checam imagens na internet antes da contratação.
Vazamento de dados, roubo de identidade, riscos de sequestros, golpes e exposição a redes de pedófilos também são riscos potenciais. “Antes a gente falava que estava na Deep Web ou Dark Web, agora não. Está no Instagram, está no TikTok, está em todo lugar que você vai ver”, alerta Farah Diniz sobre a presença de redes de pedófilos nas redes sociais.
A respeito disso, em vídeo publicado no dia 6 de agosto de 2025, o youtuber Felca denuncia esquema de sexualização e “adultização” de crianças na internet. No vídeo, o youtuber mostra que as redes de criminosos usam códigos, emojis e sinais específicos para se comunicarem em plataformas abertas.
Youtuber Felca acende alerta sobre os perigos da exposição de menores nas redes sociais. Foto: Reprodução/YouTube
Neste contexto, até mesmo conteúdos inocentes estão sob risco, com a popularização das inteligências artificiais, utilizadas por pedófilos para manipular imagens de crianças e adolescentes em contexto de abuso.
COMO PROTEGER CRIANÇAS E ADOLESCENTES?
Ao Entrepontos, a advogada Farah Diniz compartilhou algumas dicas para evitar ou minimizar riscos ao compartilhar imagens de crianças e adolescentes nas redes sociais. Segundo Farah, é importante se atentar aos seguintes pontos:
Não publicar fotos de crianças apenas de fralda ou de crianças e adolescentes com pouca roupa, com as pernas abertas, comendo alimentos de boca suja, como chocolate, sorvete, banana, ou até mesmo abrindo a boca.
Não postar momentos de crise, choro, “birra”, discussões com responsáveis, familiares ou outras crianças.
Não compartilhar imagens de farda escolar ou conteúdos que revelem informações sobre rotina, localização da casa, da escola ou de outros espaços frequentados pelos jovens.
Não realizar publicações em tempo real.
Em caso de emojis para tapar o rosto, avaliar se os emojis não podem causar algum constrangimento à criança ou adolescente.
Não publicar emojis que possam ser interpretados como de cunho sexual, como 🔥💧👄👅🍆, bem como os emojis 🧀🍕🌀😵💫, e se atentar aos comentários que os utilizam.
Sobre os emojis, Farah alerta que eles são utilizados como uma espécie de linguagem internacional em comunidades de pedófilos. O "c" de cheese (queijo🧀) representa child (criança) e o "p" de pizza (🍕) pornografia. Além disso, os espirais são utilizados como símbolo de reconhecimento entre a comunidade de criminosos. Por isso, é importante estar atento caso esse tipo de conteúdo apareça nos comentários, pois podem representar um risco. Comentários de minutagem também devem ser checados para verificar se não houve alguma exposição que coloque em risco a criança.
Com o intuito de alertar pais, educadores e responsáveis para os riscos da exposição exacerbada de crianças, em 2024 o Instituto Viva Infância lançou a campanha “Curta seu filho. Não compartilhe”. A campanha, realizada em parceria com o Engenho Novo, alerta para os perigos do compartilhamento da imagem infantil, mesmo em situações cotidianas. Claudia Mascarenhas, uma das responsáveis pela coordenação da campanha, comenta que “é claro que os pais querem compartilhar, que os pais querem mostrar as conquistas dos seus filhos, então, se eles querem fazer isso, eles precisam fazer de uma forma extremamente ponderada”. O que ela sugere é que as imagens sejam compartilhadas em mensagens privadas no WhatsApp, mas se houver mesmo o desejo de publicar numa rede, que seja num perfil privado, reduzindo assim as chances de essa imagem ser usada para outros fins.
Campanha "Curta seu filho". Não compartilhe", do Instituto Viva Infância. Foto: Reprodução
É o que faz a pedagoga Tainah Almeida. Ela é mãe de duas crianças, uma menina de 6 anos e um menino de 11, e raramente posta fotos deles nas suas redes. Quando o faz, é no seu perfil privado, então há uma seleção de quem tem acesso a essas fotos. Enquanto mãe e pedagoga, Tainah também relata reforçar sempre os cuidados com seus alunos: “Sempre observo como a criança está se posicionando na foto, para que não haja nenhuma exposição de cenas inadequadas. Há uma seleção cuidadosa das imagens a serem colocadas nos vídeos realizados, que só são postados no aplicativo da escola, que só os próprios pais têm acesso”.
Emile, que além de psicóloga, é mãe, fala também da importância de viver os momentos sem compartilhar, e reforça o lugar da infância enquanto campo de construção de sujeitos: “Esse é um território muito sagrado, de grandes descobertas, mas também de algo que pode render muitos riscos quando tudo isso passa a ser um espetáculo. Então, registrar memórias é algo muito bom, é legítimo, mas a proteção deve vir sempre em primeiro lugar”.
Edição: Isabel Queiroz e Thyffanny Ellen
Editor-executivo responsável: Leo Prado