Malu Sampaio
Fenômeno parece revelar mais que curiosidade: seriam reflexos de medo e empatia?
Fascínio, raiva, angústia. Uma mistura complexa de emoções define a experiência do público de crimes reais. Também conhecido como “True Crime”, o gênero que explora o desenrolar de casos criminais tem dominado as plataformas de streaming e redes sociais, como TikTok e Youtube. Maior plataforma de streaming musical do globo, o Spotify tem pelo menos 50 programas dedicados ao gênero. Um deles é o podcast “Modus Operandi”, apresentado por Carol Moreira e Mabê Bonafé, mais escutado entre a categoria no Spotify Brasil. Nascido em 2020, o programa consolidou-se como referência na classe e atrai, majoritariamente, o público feminino. Carol e Mabê contam que mais de 70% da audiência é composta por mulheres. Mas o que faz com que elas sejam as principais fãs desses conteúdos?
Foto: Reprodução/Spotify
A resposta está possivelmente relacionada à experiência de gênero na sociedade, como explica a psicóloga cognitivo-comportamental Maria Alice Terra. “Muitas mulheres consomem esse conteúdo não apenas por curiosidade, mas também como uma forma de aprendizado e vigilância. É como se, ao entender os padrões de comportamento de agressores, elas se sentissem mais preparadas para reconhecer sinais de perigo e se proteger”.
Ainda nessa perspectiva, a Civic Science, empresa de análise de consumo humano, realizou uma pesquisa relacionada aos interesses do público estadunidense, e constatou que o segundo tipo de podcast mais escutado entre as mulheres do país é o de True Crime. Para Terra, a identificação com as vítimas também é um ponto crucial para essa preferência. De acordo com a profissional, ao consumir histórias de crimes reais que envolvem outras mulheres, as espectadoras tendem a se sensibilizar com as vítimas e reconhecer medos e vulnerabilidades em comum, o que pode gerar os sentimentos de solidariedade, empatia, e, principalmente, revolta.
Fátima Pereira dos Santos, de 20 anos, é uma entusiasta declarada do gênero e o enxerga como uma maneira de entender a mente humana. “O que me atrai não é apenas a curiosidade, mas me imaginar naquela situação. É como se o documentário que estou assistindo fosse um vídeo de autodefesa, sobre o que tenho que fazer para que aquilo não aconteça comigo”, conta a estudante de direito.
A mesma coisa acontece com Juliana Goulart, estudante de Engenharia de Sistemas. Para a jovem de 21 anos, o apelo do True Crime está em entender o modus operandi e a mente dos criminosos, como uma forma de desvendar as estratégias por trás dos crimes. “Na maioria das vezes eu sinto medo, por muito tempo tive dificuldade até para dormir. É angustiante pensar no que a vítima sentiu e na sua família ao receber a notícia”, reflete.
Embora o gênero seja muito cativante para a mente humana, o consumo excessivo pode causar efeitos ambivalentes ao público feminino, alerta Maria Alice Terra. A psicóloga adverte que o acesso frequente a esse tipo de conteúdo pode, ao mesmo tempo, trazer a sensação de preparo e controle, como também reforçar o medo constante de ser uma possível vítima de violência. De acordo com ela, o costume pode gerar impactos ainda mais profundos em pessoas mais sensíveis ou ansiosas, como o aumento da percepção de insegurança, pensamentos paranoicos ou a dessensibilização a violência.
A mesma preocupação foi compartilhada por Isadora Simões, de 22 anos. A estudante de jornalismo costumava assistir ao "Quinta Misteriosa", quadro do canal de Youtube de Jaqueline Guerreiro, que apresenta casos de crimes famosos. Com o tempo, ela se sentia "anestesiada" e passou a questionar a frequência de consumo desse tipo de conteúdo: "Eu me sentia mal por perder a noção de que o que eu estava assistindo eram histórias verdadeiras. Eu estava consumindo como se fosse entretenimento”.
Foto: Reprodução/YouTube - Canal Jaqueline Guerreiro
Mais que meras personagens de um enredo, as principais vítimas desses programas também são mulheres: possuem rostos, nomes e histórias de vida reais. No Brasil, os números de violência contra a mulher são alarmantes: 21,4 milhões de mulheres de 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses, como aponta o Instituto Datafolha. Nesse cenário, o consumo de produções de True Crime por um público majoritariamente feminino estabelece uma relação complexa, na qual a exposição recorrente a casos de feminicídio, abuso e desaparecimentos pode tanto refletir quanto reforçar a naturalização da violência de gênero. "Nosso cérebro foi moldado para prestar atenção em ameaças, acompanhar essas histórias violentas pode ser uma forma de inconscientemente e conscientemente conhecer sinais de perigo ou aprender como evitar certas situações", acrescenta a psicóloga Maria Alice.
Edição: Leo Prado e Rodrigo Junior
Editora-chefe responsável: Bia Nascimento