Thyffanny Ellen
No convite feito pelo samba-enredo ‘’Waranã, a Reexistência Vermelha’’, da Unidos da Tijuca no carnaval de 2022, perpassa-se a doçura das entidades que encantam desde os simpatizantes até os pertencentes das religiões de matriz africana: os erês. Nesse chamado, o eu-lírico convida o erê a se juntar à celebração e apreciar o 'doce mel: símbolo das riquezas naturais e culturais da mata. De qualquer forma, seja em fevereiro ou em outubro - quando se comemora o dia das crianças (12/10) -, nas religiões de matriz africana, o calendário vai de desencontro às comemorações nacionais, já que o mês anterior é marcado pelas festividades de Cosme e Damião junto aos erês, em 27 de setembro, antecipando a celebração da existência de seres tão puros e poderosos. Mas, afinal, o que torna esse mês tão especial?
Dentro dessas religiões, os erês são intermediadores entre qualquer ser humano e seu orixá, as maiores divindades na hierarquia religiosa. A palavra erê vem do iorubá e significa "brincar", mas além de serem símbolos de muita diversão e leveza, esses seres são considerados capazes de realizar mudanças significativas na vida das pessoas que rogam por eles. Os mais conhecidos, Cosme e Damião, são fruto do sincretismo religioso, mas os outros erês são crianças desencarnadas, destinadas a ajudar quem precisa.
Os gêmeos, famosos por suas vestes vermelho e verde, simbolizando o martírio e a esperança, respectivamente, passaram seu tempo em vida atendendo os necessitados de forma voluntária, já que eram especialistas na área da ciência e medicina. Consequentemente, até hoje são intercedidos para atenderem as demandas da saúde, especialmente de crianças.
Ilustração: @brenoloeser no Instagram
Apesar de parecer desconexo, a associação entre os santos e as crianças parte do sincretismo realizado na época da escravatura, já que na falta da liberdade para cultuar os orixás, os escravos os relacionaram aos santos do catolicismo. Assim, a imagem deles foi vinculada aos também gêmeos Ibejis, orixás que representam a dualidade da vida, mas, acima de tudo, são protetores das crianças.
Ao pensar na Bahia, o mês de setembro é marcado gastronomicamente pelo prato típico oferecido aos erês: o caruru. Na tradição, a iguaria passa a ser composta não somente pelo cozido de quiabo com camarão, visto que nessa celebração os acompanhamentos são diversas outras comidas oferecidas a diferentes orixás, como exemplo, o bolinho de acarajé, ofertado a Iansã. O famoso caruru de rua une os terreiros às comunidades que eles pertencem, prática essa que o torna um símbolo de união e tradição, que passa de geração em geração. Ainda durante a festa dos erês, na maioria das casas de axé, algo ímpar acontece: os papeis se invertem. Inicialmente, a hierarquia candomblecista determina que os mais velhos - de tempo maior nos cargos - se alimentem primeiro, mas, em desencontro com isso, em cima de uma esteira de palha, forma-se uma roda com geralmente sete crianças, que serão as primeiras a degustar da comida. Dessa forma, acredita-se que ao alimentá-las primeiro, os adultos estão garantindo a proteção dos erês, que por sua vez, abençoarão as crianças com saúde, alegria e prosperidade.
Há nove anos, numa cidade da Chapada Diamantina, uma enorme angústia permeava a família de Michele Ribeiro, atual candomblecista. Sem saber o que fazer após sua irmã passar por vários médicos e não obter diagnósticos, ela recorreu à fé em algo maior para dar luz a situação. Nesse propósito, se apegar ao clamor de uma amiga próxima da família, Sheila Maria, foi o que trouxe a saúde de sua irmã de volta. A partir desse momento, Sheila estava à frente do compromisso de fazer e distribuir caruru em gratidão aos gêmeos de verde e vermelho por sete anos consecutivos, já que eles mudaram o curso da situação. “Graças a essa promessa e à fé, a minha irmã hoje está curada, só que até então eu não entendia muito bem o que era a religião’’, declara.
O poder dessas entidades, que realizam o que considera-se “impossível’’ em pouco tempo, é construído através da tradição, da experiência comunitária e da prática ritualística, que é uma parte essencial do funcionamento dessas religiões. “Os erês são crianças inocentes, eles são a própria pureza, são a cura e trazem a saúde pra gente’’, acrescentou. Para além de curadores, a ajuda também pode se manifestar na vida cotidiana dos que os intercedem”. Eles também nos ajudam a resolver problemas familiares, qualquer pessoa que tiver com problemas, tanto espirituais como carnais, eles ajudam a resolver, mas, se não conseguirem solucionar sozinhos, nos encaminham para que possamos fazer isso’’.
Com imponência, a celebração do dia dos erês cresce a cada ano, seja pelo aumento do número de adeptos às religiões ligadas à festa, ou pelas pessoas que participam para agradecer. ‘“Onde eu vivencio o caruru dos erês, a cada ano o festejo aumenta, e não é só porque são crianças, mas porque todas as pessoas que pagam suas promessas ali tiveram um problema e a resolução veio por intermédio deles’’.
Para ela, o contato com esses seres é único, especialmente quando alguém realmente necessita de ajuda. Ao sentar para conversar com uma criança encarnada no corpo de um adulto, a entidade sente a angústia do outro e imediatamente se dispõe a ajudar. “Eu vejo que pela pureza deles, eles conseguem nos transmitir uma firmeza, uma esperança e às vezes é aquilo que a gente procura. Então, acredito que a partir dessa pureza e a leveza que os eres têm, a cada ano a fé que as pessoas têm neles será maior, assim como as festas também serão maiores, porque eles merecem’’. Para Michele, a maneira em que se deu a cura da doença de sua irmã se tornou uma parte importante da sua vida e das pessoas que conhece.
Diante de inúmeros festejos espalhados país afora em comemoração às crianças da religião, é inegável que, para além do 27 de setembro, todo dia é dia de erê.
Edição: Rodrigo Junior
Editora-chefe responsável: Bia Nascimento