Leo Prado
Segundo o dicionário Merriam-Webster, sample é “um trecho de uma gravação (como uma canção popular de outro artista) que é usado em uma composição musical, gravação ou performance”, ou seja, um pedaço de uma música ou som pré-existente reutilizado em um lançamento de um outro artista, que pode incluir ritmo, melodias, progressões harmônicas e vocais. O fato é que essa técnica popularizada pelo hip-hop já está mais do que consolidada na indústria musical e passa pelo seu momento auge no meio do rap. O que antes era apenas uma escolha criativa, hoje pode ser sinônimo de sucesso e engajamento — e ganha até o poder de redescobrir artistas do passado.
“Hoje, quando um beatmaker começa a produzir, ele sempre parte de uma harmonia, que normalmente é um sample. É uma das primeiras estruturas da base de um rap. O lance de recortar trechos e começar a compor a partir disso é uma coisa muito comum mesmo”, explica o músico e produtor Theo Zagrae, um dos produtores do mais recente álbum do rapper carioca Abebe Bikila, mais conhecido como BK’. O Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer, ou DLRE, como também é chamado o disco, tem músicas com samples que se tornaram virais nas redes sociais no último mês, de artistas brasileiros como Djavan, Milton Nascimento, Fat Family e Evinha.
Sucesso e brasilidade
O álbum lançado em janeiro deste ano se destacou pelo trabalho criativo voltado ao uso de samples, com faixas que giram em torno das regravações e as utilizam até mesmo como refrão. Em entrevista ao portal RapMais, Abebe falou que a técnica, de fato, foi um dos pontos centrais da composição do projeto e que a intenção era “valorizar a musicalidade do Brasil [...] fazer esse resgate do que é nosso e importante”.
“Foi uma decisão criativa do BK’. Ele sempre falou sobre esse sonho que tinha de fazer um disco todo ‘sampleado’, levantar a cultura do Brasil, usar coisas daqui e trazer para o contexto atual”, lembra Theo. Ele diz que a construção do álbum exigiu um intenso processo de pesquisa, para encontrar os trechos ideais que seriam utilizados como sample em cada faixa. “Demoramos de maio a agosto só pesquisando coisas. Pesquisamos muito antes de chegar na estética final. Ouvimos mais de 96 beats e trabalhamos em mais de 50, mexendo, tocando e retocando. Desses 50, saíram as 16 músicas”.
O produtor conta que a elaboração dos sons a partir das regravações demanda uma atenção redobrada da equipe responsável, para dar a coerência necessária ao trabalho: “Depois da escolha do trecho, é preciso saber a estética que aquilo vai levar. Pegamos uma música do Milton Nascimento e colocamos em um house, por exemplo, a Luciana Mello num R&B. É sobre o lugar musical que você está pensando para aquele recorte. Além disso, temos que ter atenção máxima em relação a tonalidade, melodia, harmonia e tudo que estiver na música original”.
Além de BK', músico e produtor Theo Zagrae já trabalhou com artistas como Melly, Luedji Luna e Vanessa da Mata.
Foto: Reprodução/Redes Sociais
Dentre os maiores destaques do disco estão as músicas “Cacos de Vidro” e “Só Quero Ver”, que utilizam, respectivamente, trechos das canções “Espera Pra Ver” e “Só Quero” da cantora setentista Evinha. Até o lançamento do álbum, a artista, hoje com 73 anos, vivia sem muitos holofotes, mas teve sua obra impulsionada a partir das faixas do DLRE. Em plataformas como o TikTok, vídeos que usam as músicas de BK’ como trilha sonora quase sempre destacam os trechos em que a voz de Evinha está presente. À Billboard Brasil, ela disse que o rapper “soube trazer as palavras escritas nos anos 70 aos dias de hoje”. No último dia 26, os dois se encontraram em show no Rio de Janeiro e cantaram juntos os sucessos do disco.
Tendência crescente
Theo diz enxergar o poder de engajamento das músicas possibilitado pelo uso do sample, como foi no caso do DLRE, e projeta um futuro em que isso pode ficar ainda mais presente na indústria: “A partir de agora, as empresas e os artistas vão começar a olhar para isso como uma possibilidade lucrativa. O mercado ganha mais uma janela onde os artistas podem rentabilizar seus trabalhos. Vai todo mundo ‘cair para dentro’ disso”.
“Essa é uma forma inovadora de utilizar o sample: além da base instrumental, usar a voz do cantor sampleado, criando quase como um feat. É interessante, tanto para o rapper, quanto para o artista referenciado, porque ele vai ficar em evidência novamente com uma música que já existia em uma nova roupagem”, analisa o músico e criador de conteúdo digital Eduardo Meneghel, que acredita que o sample está, de fato, ganhando cada vez mais protagonismo nas faixas de rap, e evoluindo para novos formatos. Como entusiasta da técnica, ele tem um perfil nas redes sociais, criado no início de 2024, no qual publica vídeos desvendando referências e gravações originais por trás dos grandes sucessos da música. Hoje, a página @sampleassim soma mais de 200 mil seguidores no Instagram.
Apesar disso, Eduardo conta que, antes de usar vocais, os primeiros samples utilizados no hip-hop eram voltados para linhas instrumentais, de gêneros como funk e soul: “Os raps usavam as bases de instrumento das músicas, com bateria principalmente. O DJ criava essa base e o MC rimava em cima disso. Com o passar dos anos, eles começaram a deixar mais complexo: colocavam o teclado de uma música com a bateria de outra, ou misturavam o teclado de uma com uma guitarra de outra, por exemplo”. Segundo ele, desde que foi popularizada, entre as décadas de 1970 e 1980, a técnica passou a incorporar cada vez mais elementos das músicas recortadas, até chegar ao cenário atual.
“É um mérito desses produtores sacar que uma música dos anos 70 vai chegar agora e virar um ‘chiclete’. Essa visão de pegar algo que já existe e ressignificar é muito legal, porque gera uma conexão de gerações e mostra para um novo público, que talvez nunca iria conhecer determinado artista. Muita gente não conhecia a Evinha, por exemplo, e por causa dos seus refrões nas músicas do BK’, as pessoas estão redescobrindo ela”, ressalta Eduardo.
Em pouco mais de um ano, Eduardo Meneghel conquistou mais de 208 mil seguidores com perfil que analisa samples.
Foto: Leonardo Matos/Liberal
Edição: Bernardo Maia e Thyffanny Ellen
Editor-chefe responsável: Rodrigo Junior