Ana Elisa Machado
O que já foi e o que é a imunização no Brasil
Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS) completa 35 anos. O SUS surgiu junto à Constituição de 1988, permitindo que toda a população brasileira possuísse um sistema unificado de serviços médicos, distribuição de medicamentos e vigilância sanitária de forma totalmente gratuita.
O SUS é considerado um marco na história nacional, sendo o maior sistema público de saúde no mundo. Entre os diversos serviços prestados, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) é o maior programa público de vacinação da América Latina, e oferta 48 imunobiológicos, sendo 31 vacinas, 13 soros e 4 imunoglobulinas. Todas as vacinas recomendadas como obrigatórias à saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) atualmente são disponibilizadas pelo SUS.
O PNI, no entanto, tem uma história mais antiga que a do sistema de saúde brasileiro, existindo desde 1973. Mas a vacinação brasileira começou muitos anos antes, segundo o historiador Filipe dos Santos Portugal. Nos seus artigos “A Institucionalização da Vacina Antivariólica no Império Luso-brasileiro nas Primeiras Décadas do Século 19” e “A Junta da Instituição Vaccinica da Corte do Rio de Janeiro”, ele explica que, em 1804, foram importados os primeiros vírus vacinais de Lisboa à Salvador, já que as vacinas prontas não suportavam a viagem de 40 dias de barco. Foram levados, então, sete meninos e meninas negros em situação de escravidão à Portugal como cobaias para trazerem os imunizantes nos braços, e retiravam o pus ao chegar ao Brasil.
O PNI foi criado Plano para incorporar o Plano Nacional de Controle da Poliomielite
Foto: Reprodução/Ministério da Saúde
Em 1811, foi criada a Junta da Instituição Vacínica da Corte para promover a vacinação em massa primeiramente na corte do Rio e depois como centro difusor para outras províncias. Uma das técnicas de convencimento era realizar a vacinação na Igreja, que além de reunir muitas pessoas, trazia a ideia de que aquilo era algo sagrado.
Em 1900, foi criado o Instituto Soroterápico Federal — que posteriormente se tornaria a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) —, para fabricar soros e vacinas.
Em 1904, ocorreu a conhecida “Revolta da Vacina”. A vacinação compulsória, que passa a ser destinada a toda a população, é mal recebida pelo povo, gerando combates nas ruas e forte violência policial. Segundo arquivos do acervo da Fundação Oswaldo Cruz, por conta do caos político e social, a vacina deixa de ser obrigatória, mas depois de um novo surto de Varíola em 1908, a própria população percebe os efeitos positivos e adere à imunização, o que enfraqueceu consideravelmente a doença no país. Oswaldo Cruz, médico responsável pela campanha da imunização contra a febre amarela e a varíola, é reconhecido como um dos profissionais de saúde mais relevantes do mundo.
Página do jornal Gazeta de Notícias em 14/11/1904, dias após regulamentação da vacina obrigatória contra a varíola
Foto: Reprodução/Gazeta de Notícias/BN Digital
Em 1977, é criada a caderneta de vacinação, mesmo ano em que o mundo viu os últimos casos de varíola. Neste momento, já existem campanhas contra poliomielite (ou paralisia infantil), meningite e sarampo. Vitória Cairo, enfermeira aposentada, participou da erradicação da poliomielite no Brasil em 1989, da eliminação do sarampo em 2016, rubéola em 2015 e rubéola congênita em 2016. Ela comenta o desafio para realizar as vacinações em áreas interioranas e rurais, que eram necessárias viagens e uma estratégia de divulgação feita pelos próprios vacinadores.
DIA D: DO FAX À ATUALIDADE
O “Dia D” é uma data criada pelo Ministério da Saúde ou pelas secretarias dos estados para mutirões de vacinação desde os anos 80, principalmente para poliomielite. Foram nesses dias que a enfermeira Vitória, junto com a equipe, procuravam pontos estratégicos para conseguirem o maior número de pessoas possíveis, às vezes em escolas, postos de saúde e até casas de vizinhos.
A falta de tecnologia era um desafio na época, antes dos sistemas de internet, os pedidos de vacinas eram feitos por fax e anotados em cadernos, sem muita organização. Apesar disso, a ciência e o ensino sempre foram muito presentes, possibilitando a eliminação dessas doenças: “A campanha de rubéola congênita foi muito grande. Nós fizemos uma capacitação de oito dias com todos os municípios da região”, afirma.
Vitória Cairo se aposentou no ano de surgimento da pandemia da COVID-19, e durante sua carreira viu a importância central do PNI e do SUS. Apesar disso,sugere melhorias: “As secretarias de saúde não dão muita importância ao serviço de imunização, que é totalmente gratuito. O governo dá as vacinas, os insumos, o algodão, as geladeiras, tudo é de graça. Mas tínhamos, como ainda temos, dificuldade de investimento nos municípios, de um profissional que fique à frente, trabalhando exclusivamente com a vacina”.
Além das vacinas do calendário regular, o Centro de Referências para Imunobiológicos Especiais (CRIE) disponibiliza vacinas específicas para pacientes que apresentam maior risco de desenvolver doenças infecciosas. Dessa maneira, pacientes imunossuprimidos, que têm maior risco de mortalidade por doenças, têm acesso a vacinas que podem salvar suas vidas mas não são distribuídas para toda a população gratuitamente.
Em 1986, o artista Darlan Rosa foi convidado pelo Ministério da Saúde para desenhar o rosto da vacinação brasileira. O desenho precisava ser simples e convidativo, que passasse confiança às crianças e aos pais que iam levá-las aos postos de saúde. Em entrevista ao blog do Governo Federal, ele diz que os traços simples foram propositais para que pudesse ser facilmente reproduzido pelos profissionais de saúde e pelas crianças. “Na época, tudo era feito manualmente e os profissionais do postinho desenhavam os avisos para convidar as crianças ou informar os pais, por isso, era tão importante que meu personagem fosse simples”. Com o desenho pronto, foi criada uma propaganda em que o personagem pedia um nome e uma campanha que as pessoas mandavam sugestões. O ganhador caiu no gosto popular: Zé Gotinha.
Darlan Rosa e Zé Gotinha
Foto: Reprodução/Governo Federal
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
O Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde entendem hoje a hesitação vacinal como uma das dez principais ameaças à saúde global. Esse termo refere-se ao atraso ou recusa das vacinas recomendadas, mesmo que acessíveis, por diferentes motivos, mas principalmente causados por desinformação e medo populacional. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que analisou mais de 80 milhões de mensagens em grupos do Telegram revelou que quase 40% de todo conteúdo antivacina da América Latina circula em grupos brasileiros. Em 2025, o Brasil voltou para a lista dos países com mais crianças não vacinadas no mundo, na décima sétima posição.
Na pandemia do Covid-19, infecção respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2, os profissionais de saúde voltaram a batalhar contra um desfio antigo: convencer a população de que a vacina é segura. Taluana Leão, enfermeira do CRIE na Bahia, explica que seus pacientes com comorbidades se sentiam inseguros de se vacinar devido às fake news que o cercavam sobre os imunizantes. Ela explica que a vacina deve ser tomada frequentemente, mesmo após o fim da pandemia. “Nós sentimos que, no decorrer dos anos, por conta do aumento da desinformação, a aceitação para a vacina da Covid é mais difícil. Explicamos para nossos pacientes que, por terem comorbidades, têm muito mais chance de terem quadros graves, e assim conseguimos convencê-los”, diz.
Patricia Costa é enfermeira da Atenção Primária de Saúde e professora universitária da Faculdade Independente do Nordeste (Fainor). Em suas aulas práticas, é demonstrado o passo a passo do transporte e aplicação das vacinas. Também são ensinados mitos e verdades sobre sobre ela. Táticas são aplicadas para convidar pacientes a se vacinarem, como campanhas em escolas e hospitais. Segundo a professora, a pessoa tende a confiar na explicação do profissional, por isso, é de extrema importância esse aprendizado ainda na faculdade. “O profissional de saúde precisa estar preparado nesse sentido para discutir com o paciente no sentido de colocar pra ela a informação, dizer se ela procede ou não, e qual é o contexto em que surgiu”.
Patrícia e seus alunos em aulas práticas na rede de frios
Foto: Acervo Pessoal
Linha do tempo da história da imunização no Brasil:
1804: Primeiras formas de imunização são trazidas de Lisboa para Salvador
1811: É criada a Junta da Instituição Vacínica da Corte para vacinações em massa
1900: É criado o Instituto Soroterápico Federal (hoje chamado de Fiocruz) para produção de vacinas no país
1904: Vacina de Varíola passa a ser obrigatória e ocorre a Revolta da Vacina
1908: Novo surto da doença e população adere a vacinação, Oswaldo Cruz é reconhecido internacionalmente
1961: Primeira campanha de vacinação contra a poliomielite
1973: Criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI)
1977: É criada a caderneta de vacinação e a varíola é erradicada no mundo
1984: Início do dia D contra poliomielite e estratégias de multivacinação
1985: Criação do SUS, o PNI é integrado ao sistema
1986: Criação do Zé Gotinha
1989: Erradicação da Poliomelite (ou paralisia infantil)
1999: Começam as campanhas de vacinação contra gripe
2015: Eliminação da Rubéola
2016: Eliminação do Sarampo e Rubéola Congênita
2018: Vacina contra HPV foi ampliada para meninos adolescentes
2021: Vacinação contra Covid-19 começa no Brasil
2025 — A Anvisa aprova, em novembro, a primeira vacina 100% nacional e de dose única contra a dengue, desenvolvida pelo Instituto Butantan
2026 (previsto) — Início da oferta da vacina de dose única contra dengue no SUS