Thyffanny Ellen
Olhar no espelho e não se reconhecer. Pentear o cabelo e não se agradar. Sentir que só seria realmente bonita ou "mulher” se o cabelo estivesse liso. Para muitas meninas negras, essa experiência não é novidade. O liso é sinônimo de maturidade, elegância e aceitação. O crespo, muitas vezes, pode ser ligado ao desleixo, infantilidade, ou rebeldia.
Um artigo publicado na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), retrata a conexão entre o racismo estrutural, legado do colonialismo, e o adoecimento psíquico de mulheres negras. Desde a infância, elas têm sua identidade negada por padrões de beleza historicamente construídos, que as impulsionam a um doloroso processo de "não ser", e o alisamento dos cabelos emerge como uma das mais visíveis representações dessa violência racista.
Mas o artigo não se detém apenas à dor. O texto aponta para o empoderamento como um caminho vital para cura e resistência. A transição capilar - o abandono do alisamento em favor do cabelo natural, seja crespo, cacheado, trançado ou Black Power -, é apresentada como o início da ruptura com esses padrões estéticos. Mais do que uma mudança de visual, esse movimento é compreendido como um ato político de luta, resistência, autocura e desobediência contra as lógicas coloniais da branquitude.
O corte realizado para remover as partes alisadas do cabelo é conhecido como "big chop". Mais do que um corte, é visto como símbolo de um renascimento e despertar para a consciência racial coletiva. A aceitação dos cabelos naturais transcende a esfera individual e se torna um ato ancestral de celebração e respeito com a própria identidade e o grupo étnico-racial. Para Dandara, uma das autoras do artigo, a superação da depressão e o processo de empoderamento envolveram a busca por arte, música, espiritualidade e apoio, culminando na aceitação de seu black power e na consciência crítica sobre o racismo e o sexismo. Assim, o cabelo afro natural simbolizaria a máxima desobediência às normas eurocêntricas e passaria a se tornar uma fonte de autocuidado, autoestima e a cura da saúde mental das mulheres negras.
A psicóloga Dayane Pereira explica que a forma como uma criança aprende a lidar com o próprio cabelo acompanha sua vida inteira: “a infância é um chão que a gente pisa a vida toda”. Entre o nascimento e os sete anos, registramos sensações e experiências que moldam nossa autoestima e identidade. Se uma menina negra cresce ouvindo que seu cabelo é difícil, feio ou trabalhoso, pode carregar essa percepção até a vida adulta, o que influencia diretamente como se vê. Por outro lado, se o entendimento for que seus fios merecem cuidado, carinho e respeito, é possível construir uma relação positiva que tende a se manter ao longo da vida, mesmo que enfrente desafios.
Ela também chama atenção para a infantilização do cabelo crespo e cacheado, algo que ainda atinge muitas mulheres negras. Segundo Dayane, considerá-lo infantil, informal ou deselegante é uma forma de desvalorizar a estética negra e colocar essas mulheres em um lugar de subjugação. “Vivemos num mundo extremamente visual e definir que cabelos cacheados são menos formais ou infantis coloca essas mulheres um passo atrás de todas as outras pessoas, como se a escolha por manter esse cabelo fosse definidora do quanto serão respeitadas no trabalho, por exemplo”, explica.
Aos 26 anos, a analista de redes sociais Camila Pereira é um retrato da pesquisadora Dandara. Ela lembra bem do medo que sentia ao pensar em seu cabelo natural. “Tinha medo de cortar, de me sentir feia, de como as pessoas iam me ver. Onde eu vivia, era todo mundo branco, cabelo liso, pele clara. Isso interfere”. Por muito tempo, ela recorreu a químicas uma das químicas mais tradicionais, a guanidina, e até ao antigo ferro quente para alisar, como sua mãe e suas irmãs também faziam. O medo não era só do volume dos fios, era de não se encaixar diante do mundo. Até que, durante a pandemia, começou a transição capilar. “A pandemia me forçou a parar. A não poder ir ao salão. A me olhar”.
Com orgulho, Camila registrou o resultado do cabelo pós transição capilar
O processo de aceitação de Thábata também ocorreu aos poucos
Foto: Acervo Pessoal
O coletivo também interfere no jeito que as pessoas se enxergam no mundo. Estar na cidade mais negra fora da África pode ser um fator importante para que muitas meninas negras se reconheçam, sintam-se parte de algo maior e tenham coragem de afirmar sua identidade com mais liberdade.
Natural de Maceió, a artista Thábata Dantas, 26, também passou pela transição. Foi só chegar em Salvador, onde 80% da população é negra, que passou a se olhar de outro jeito. “Estar em uma cidade com mais pessoas negras me trouxe um senso de pertencimento que eu nem sabia que faltava”. Ver nas ruas cabelos como o dela fez questionar o incômodo que sentia antes. Foi quando decidiu parar de usar a química botox e se permitiu ocupar outros lugares com o próprio cabelo. “Me reconhecer nos espaços e me sentir à vontade com meu cabelo natural mudou tudo”.
Hoje em dia, usar tanto o cabelo natural quanto outros penteados já faz parte de seu cotidiano
Foto: Acervo Pessoal
O processo de aceitação para Camila também foi aos poucos. Ela conta que começou usando tranças feitas pela irmã com linha de crochê para passar pela transição. No início, foi difícil romper com o preconceito que ela mesma carregava: “Eu dizia que nunca mais ia colocar cabelo que não fosse meu na cabeça. Mas precisei quebrar isso em mim”. O que antes era insegurança virou cuidado. E o cuidado virou orgulho. “Minha irmã cortou meu cabelo em casa. Quando vi meus cachinhos pela primeira vez, me emocionei”.
Atualmente, o cenário é outro: o cabelo é parte da sua força. “Ele representa quem eu sou, de onde eu vim. Me sinto mais bonita com ele, mais segura. Entrei na faculdade, comecei terapia, fui me entendendo”. E no meio disso tudo, as tranças seguem como aliadas: “uso trança, uso puff, uso penteados. É a herança que a gente carrega. E isso me dá autoridade. Me dá domínio. Me deixa mais bonita. Mais eu”.
É o que vê de perto a trancista Carine Silva, 26, que desde os 15 anos vive das tranças. “No dia a dia, eu consigo perceber um aumento da autoestima nas mulheres pretas. A gente começou a se vestir diferente, se portar diferente, e tudo isso tem a ver com a forma como passamos a cuidar e mostrar nosso cabelo. Não estamos mais presas a seguir um padrão branco. Tem mulher preta com black, com trança, com corte curto, com puff. Isso é potência”.
Desde a adolescência, penteados afros são a principal fonte de renda de Carine
Foto: Acervo Pessoal
Para Carine, fazer cabelo vai muito além da estética: “Quando a gente faz trança em alguém, ajudamos a curar algo ali dentro. A cliente começa a se amar mais, se ver de outro jeito e se enxerga nos espaços com mais confiança. E isso é muito poderoso”. Ela também relata que muitas mulheres ainda chegam com medo, por causa de mitos sobre trança quebrar ou enfraquecer o fio. “Mas quando veem que é possível usar o cabelo natural ou com trança e ainda assim cuidar, se fortalecer, elas voltam com outra postura”, conta.
Esse movimento coletivo de cura tem raízes profundas. Os penteados afro, como as tranças nagô, os coques e os penteados com linhas, têm origens ancestrais. Atualmente, seguem carregando esses mesmos significados. Quando uma mulher negra escolhe fazer um penteado com trança ou deixar o black power crescer, ela está ativando essas memórias e diz ao mundo que sabe de onde vem e se orgulha disso.
Mais do que estética, é um gesto político, como mostrou o estudo da ABPN. Ao mesmo tempo, esse gesto se conecta ao cotidiano mais íntimo, desde o banheiro de casa, onde se aprende a cuidar do próprio cabelo, até os ambientes profissionais, onde ainda é comum ouvir que o cabelo natural não é adequado ou não parece profissional.
A mudança também tem movimentado a economia. O setor de beleza afro cresceu nos últimos anos, e muitas jovens negras começaram a empreender a partir das próprias vivências, como é o caso da própria Carine. “A gente começou a aflorar nosso lado criativo também. Não é só repetir o padrão, é inventar novas formas de existir, novas formas de se arrumar, de se sentir linda”.
Com a presença crescente de mulheres negras influentes nas redes sociais, no mercado da beleza e nos espaços públicos, mais pessoas têm se sentido à vontade para reconhecer a própria estética. Penteados antes associados à infância, à “bagunça” ou à informalidade passaram a ser vistos como afirmações de identidade, estilo e autoestima. “Antes, meu Instagram era só gente branca, cabelo liso. Hoje, eu sigo várias mulheres negras e me vejo nelas”, conta Camila.
O cabelo, que por tanto tempo foi motivo de dor, hoje é sinônimo de pertencimento. É isso que também sente Thábata. “Ver nas ruas mulheres com cabelo como o meu me trouxe conforto. É como se eu finalmente pudesse relaxar. Entendi que meu cabelo não era o problema. O problema era o olhar que me ensinaram a ter sobre ele”.
Edição: Bernardo Maia
Editora-chefe responsável: Bia Nascimento