Hanna Andraus
Na Roma antiga, o governo distribuía comida gratuita e organizava espetáculos como uma forma de manter a população distante dos conflitos políticos e sociais. Essa ação ficou conhecida como política do pão e circo. Com o avanço das redes sociais, essa tática de manipulação tornou-se mais sútil, anulando a entrega de grãos e a organização de matadouros a céu aberto para entreter o povo. Hoje, a nova manobra de monitoramento e influência, são as trends.
AS NOVAS TENDÊNCIAS DIGITAIS E A FUGA DAS NOTÍCIAS
Em seu sentido tradicional, uma tendência é uma mudança geral na forma como pessoas, comunidades e sociedades pensam, sentem e se comportam. As tendências surgem lentamente ao longo do tempo e se propagam por diversos setores. Entretanto, no mundo digital, as coisas acontecem mais rápido. Nas redes sociais, o que está ‘em alta’ pode mudar em questão de segundos.
Por exemplo, há alguns anos atrás, a Internet estava obcecada com o conteúdo longo sobre maternidade da Flávia Calina no YouTube. Hoje, Virgínia Fonseca, com seus stories de no máximo 1 minuto, é o novo parâmetro para esse tipo de nicho. Assim como, há alguns anos, as crianças estavam obcecadas com o Furby, que foi substituído pelo Labubu. Thiago Assumpção, mestre em comunicação e cultura contemporânea, em sua entrevista ao Entrepontos explicou que “é preciso levar a sério essas expressões culturais [trends], porque elas dizem muito sobre o espírito do tempo. São formas legítimas de significar o mundo. Mas isso não significa que sejam neutras”.
“Não estou dizendo que há uma conspiração maquiavélica por trás do sucesso de Virginia, Labubu, Morango do Amor e até Bobbie Goods. Mas existe, sim, um sistema inteiro orientado para capturar a atenção, gerar dados e manter as pessoas engajadas em conteúdos que não gerem conflito ou questionamento”, acrescenta.
O especialista afirma que essas tendências funcionam como “zonas de alívio algorítmico”, que amenizam a tensão dos assuntos mais incômodos. Em uma era onde tudo é efêmero, e a impunidade é exercida com uma rolada no feed, as trends podem se tornar um perigo. “Dito isso, é importante entender que o que parece inofensivo, fofo ou só "memeável" também opera dentro de uma lógica de distração estrutural. Esse alívio pode até ser legítimo, mas não é neutro. Ele ocupa espaço, despolitiza o cotidiano e molda a percepção do que importa.”, comenta.
MAS O QUE AS TRENDS PODEM ESCONDER?
Nos últimos 4 anos, os relatórios sobre consumo de notícias no mundo, feito pelo Reuters Institute, evidenciam um comportamento evitativo do Brasil. Cerca de 54% dos brasileiros dizem que evitam notícias, um porcentual que se coloca acima da média mundial (38%). A pesquisa aponta que um dos motivos para essa evasão é a “sobrecarga mental”.
“Desde que começamos a acompanhar essas questões, o uso de smartphones aumentou, assim como o número de notificações enviadas por aplicativos de todos os tipos, talvez contribuindo para a sensação de que as notícias se tornaram difíceis de escapar. Plataformas que necessitam de volume de conteúdo para alimentar seus algoritmos são potencialmente outro fator impulsionando esses aumentos”, diz Nic Newman, em entrevista ao Edelman UK, no release do relatório.
Mediante a fadiga mental dos brasileiros e o comportamento evitativo perante notícias e informações, o espaço para conteúdos facilmente palatáveis se alastra, podendo encobrir falhas políticas e administrativas sem muito esforço. Basta apenas um áudio viral, uma cena engraçada, e de maneira sútil, vive-se novamente a política do pão e circo. A política no estado da Bahia, por exemplo, é beneficiária dos conteúdos virais, considerados por muitos como cortina de fumaça. O atual prefeito da capital, Bruno Reis, publicou em sua rede social um vídeo, gerado por inteligência artificial, dançando pelas comunidades de Salvador. Engraçado, curto e estrategicamente palatável, esse vídeo acoberta falhas administrativas, conversa com o público escolhido e desconstrói a persona clássica do prefeito distante.
A tática romana, que pensava-se estar ultrapassada, na realidade, mudou apenas o modus operandi. “Então isso está atrelado, por exemplo, ao avanço da impunidade, da desinformação, a produção de fake news, ou seja, tudo aquilo que os romanos desejavam lá atrás: que as pessoas se afastassem do senso crítico, se afastassem do debate.”, diz Iuri Vieira, professor de história.
“A política vai sendo empurrada pro canto, substituída pelo espetáculo; a crítica dá lugar ao entretenimento; e o que era espaço público vai se fragmentando em bolhas afetivas e mercadológicas”, conclui Thiago.
Edição: Bernardo Maia e Gabriel Freitas
Editor-chefe responsável: Rodrigo Junior