Leo Prado
Paixão nacional, o futebol ainda se mostra um ambiente em que a homofobia é extremamente presente. No Brasil, atualmente, nenhum jogador em atividade é publicamente assumido parte da comunidade. Para alguns, pode ser só coincidência, mas a situação revela o dia a dia difícil desses atletas, que temem conviver com sua sexualidade dentro do próprio ambiente profissional.
Gustavo Andrada, pesquisador de gêneros e sexualidades no futebol da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), confirma: “Há um entendimento, por parte dos jogadores, que a sua sexualidade deve estar ‘interditada’. É uma impossibilidade de falar sobre si e expressar o seu desejo, isso se manifesta de forma muito forte. A negação da existência dos homossexuais no futebol é uma violência permanente. Eles existem, jogando, treinando, ou torcendo, mas a eles não é dada a oportunidade, eles têm que ficar dentro do armário. Muitos só conseguem falar disso publicamente quando terminam suas carreiras".
UM JOGO PARA “MACHOS”
Ao fazer uma análise histórica, o especialista explica que, desde as origens, o esporte foi criado para os homens que performam a masculinidade normativa: “Sempre foi um jogo de homens. Quando foi criado, no final do século XIX, na Grã-Bretanha, o futebol surgiu para disciplinar homens, numa lógica bem próxima do militarismo, que busca criá-los engajados e disciplinados, e como um lugar onde eles poderiam exercer a agressividade e a violência. Servia para construir homens”. Assim, Andrada acredita que a homossexualidade é “anulada” no meio, por não pertencer aos estereótipos de masculinidade e virilidade. “É uma narrativa extremamente empobrecida e limitante de que a masculinidade seria uma só, toda igual. Ela é colocada em apenas um lugar, o dos homens heterossexuais e cis”.
Richarlyson foi convocado para a Seleção Brasileira em 2008, quando jogava pelo São Paulo
Foto: Reprodução/Getty Images
Dois casos são conhecidos de ex-jogadores brasileiros que resolveram “sair do armário”: Emerson Ferreti e Richarlyson Barbosa, anos depois de se aposentarem. Ambos relatam, em entrevistas, que as suspeitas de colegas durante a carreira geravam piadas e provavelmente chegaram até a atrapalhar o sucesso profissional.
O primeiro deles foi Richarlyson, que se assumiu bissexual durante participação no podcast “Nos Armários dos Vestiários”, em junho de 2022, tornando-se o primeiro jogador com passagens por clubes de Série A e Seleção Brasileira a se declarar não heterossexual. Em 2007, o ex-volante chegou a registrar queixa contra o então diretor administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, que insinuou em um programa de televisão, com tom preconceituoso, que o atleta seria gay. “Infelizmente, o mundo não está preparado para ter essa discussão e lidar com naturalidade com isso. Com certeza minha carreira poderia ter sido muito melhor em termos midiáticos por aquilo que eu construí dentro do futebol se não tivesse essa pauta [sexualidade]”, disse na entrevista de 2022.
Emerson Ferretti em sua passagem pelo Grêmio, em que foi bicampeão da Copa do Brasil em 1989 e 1994
Foto: Divulgação/Grêmio
Dois meses depois, Emerson Ferretti, ex-goleiro e atual presidente do Esporte Clube Bahia, revelou ser homossexual em entrevista ao mesmo programa. No depoimento, o atleta conta como se sentia solitário em um ambiente tão hétero-normativo, e que só chegou a se relacionar com outros homens quando passou dois anos afastado dos gramados, após uma lesão. O jogador disse existirem, sim, muitos homens gays no futebol, mas que chegam até a se casarem com mulheres para se protegerem de suspeitas. “Eu sofri bastante. Várias vezes eu pensei em desistir. Tive depressão, principalmente por conta da solidão. Eu não tinha com quem dividir isso e era um peso muito grande nas minhas costas”, relatou.
Para Andrada, ainda é possível considerar um outro aspecto que contribui para a homofobia: “Gera-se uma espécie de pânico moral, porque, teoricamente, um homossexual em um vestiário geraria caos o tempo inteiro. Isso acontece devido a uma heteresexualidade absolutamente vaidosa e egocêntrica, que acha que o homossexual teria vontade de transar com todos os homens. Isso acontece também com caminhoneiros, grupos militares, com quem trabalha embarcado, todos esses lugares em que homens passam muito tempo juntos. Em todos esses grupos há certo receio, de que, supostamente, a diferença geraria conflito. Isso acaba fazendo com que certas pessoas tenham que reprimir seus desejos e posições, ou optem por não participar desses espaços”.
PARA ALÉM DOS GRAMADOS
De acordo com o Anuário do Observatório da LGBTFobia no Futebol de 2023, última edição do levantamento realizado pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+, foram 78 episódios de LGBTFobia envolvendo agentes do futebol brasileiro naquele ano, em estádios, meios de comunicação, ambientes institucionais e outros, número que representou um aumento de 5,4% em relação à pesquisa anterior. O estudo foi realizado a partir de buscas em veículos de mídia e processos em Tribunais Estaduais e no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.
Fundador do Coletivo Canarinhos, o ativista Onã Rudá acredita que o preconceito é o que ofusca a representatividade no esporte. “Não é possível existir esse tanto de atletas e nenhum ser LGBT, isso é inconcebível. Essas pessoas estão no armário, sofrendo, se martirizando e com medo. A principal forma de expressão da LGBTFobia no futebol é a suposta ausência de pessoas LGBT. É uma forma de expressão muito silenciosa do preconceito, e por isso, as pessoas não notam de cara. Elas tratam com naturalidade uma ideia construída há muito tempo de que futebol é para macho, e homens gays ‘não são machos’”.
Hoje, os coletivos e torcidas organizadas LGBTQIAPN+ são uma das principais formas de resistência para este público dentro do esporte. Em 2019, Onã também fundou a Torcida LGBTricolor, que representa a comunidade que torce pelo Bahia, e atualmente soma mais de 15 mil membros. Ao longo dos anos de luta, o ativista conta já ter se deparado com episódios de preconceito. “Já tive que lidar com pessoas sendo ameaçadas. Vivenciamos muitos casos de hostilidade. Isso acontece muito. Nas redes sociais também é cotidiano. Se for olhar nosso último post, vai ter algum xingamento, com certeza”.
O ativista Onã Rudá exibe a camisa temática da torcida LGBTricolor
Foto: Rafael Araújo/MidiaNinja
Ao Entrepontos, Lucas Barsalini, diretor do coletivo PorcoÍris, do Palmeiras, explica que o grupo surgiu em 2018 como forma de combater as práticas homofóbicas da torcida. A partir daí, os integrantes formaram uma comunidade de apoio nas redes sociais, em que promovem ações e campanhas de ajuda à causa. “Queremos unir todas essas pessoas que são excluídas apenas por serem LGBT, porque o ambiente não é moldado para a gente. A ideia é fazer com que a gente se acolha e consiga continuar gostando de futebol, tendo um espaço onde podemos nos expressar sem ser julgados pela nossa sexualidade”.
O palmeirense conta que uma das atividades do grupo é a promoção de encontros para idas em conjunto ao estádio, devido a sensação de insegurança que sentem ao estarem sozinhos nesse ambiente.
“Temos que ouvir certas coisas e acabar relevando, pela nossa proteção. O coletivo existe porque a gente quer ser um torcedor comum. Quando estamos juntos, em maior volume dentro do estádio, damos segurança um ao outro. Queremos ter a liberdade de poder sair de casa para ver o jogo sem pensar se vamos apanhar, ser hostilizados ou sofrer preconceito. Só queremos viver como qualquer outro ser humano”. Para o pesquisador Gustavo Andrada, o problema ainda está longe de uma solução, mas para alcançá-la, é necessária uma maior mobilização.
Lucas Barsalini frequenta assuidamente a torcida do Palmeiras junto a outros torcedores LGBT no Allianz Parque, em São Paulo
Foto: Reprodução/Redes Sociais
“O primeiro passo é assumir a existência do preconceito, reconhecer que esse ambiente é homofóbico e que isso é um problema. Depois, é preciso abrir campanhas institucionais, com os clubes, federações, com quem financia os campeonatos, e que isso seja colocado como pauta. É sobre reconhecer os direitos humanos para os humanos”.
Edição: Bia Nascimento e Thyffanny Ellen
Editor-chefe responsável: Rodrigo Junior