Rodrigo Junior
Balões subindo no céu, como sonhos no ar. Cada chama que estala, parece querer falar. Não há tristeza que fique nesta noite de luar, quando a fogueira aquece, até o mais duro olhar.
Carlos Drummond de Andrade
Os versos de um dos grandes nomes do modernismo brasileiro recaem sobre uma das festas mais populares do Nordeste. A fogueira já se apagou, mas a tradição de comemorar o São João continua viva, ano após ano, no dia 24 de junho. Embora tenha sido incorporada pelo catolicismo, a data nem sempre teve o significado de celebração de João Batista, o primo que preparou o caminho para a chegada de Jesus Cristo. Recentemente, o apresentador do programa Sintonia, José Medrado, criticou a posição de algumas instituições de ensino em mudar o nome de uma das festas brasileiras mais populares. “Eu soube que tiveram escolas que não tiveram festa de São João. Era ‘Festa do Milho’, ‘Festa da Colheita’, para não fazer associação a outra religião".
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De acordo com Murilo Mello, historiador e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a celebração do período junino é muito anterior à religião Católica: “Os povos Europeus, pré-cristãos e considerados pagãos já comemoravam esse dia porque é o dia que inaugura com força o verão, o solstício, o mais claro e o maior dia no hemisfério norte”. Na região, era o momento em que do solo brotava tudo o que a população plantava, o que resultou no nome “Festa da Colheita”, dado em diversas instituições longe dos preceitos católicos. Dentro e fora do catolicismo, a festa se popularizou em todo o Brasil, principalmente no Norte e Nordeste. A chegada de junho, no interior ou capital, remete às ruas enfeitadas com bandeirolas, luzes e balões, além de fogueiras em frente aos lares.
Foto: Prefeitura de Camaçari / Região Metropolitana de Salvador
No ar, o cheiro de pólvora das bombas e dos fogos de artifício permanece. Na mesa, comidas típicas como milho, amendoim e bolos. As escolas são mergulhadas na cultura, com festas e apresentações de quadrilhas juninas, grupos de dança característicos da época. Utilizam até outros nomes para incluir crianças de outras crenças e trocam a “Festa de São João” pela “Festa Junina”. As cidades, com o intuito de fazer o capital girar, realizam festivais de música que chegam a durar mais de cinco dias. Mas quem não é adepto da comemoração, pode se sentir um "sem par" na quadrilha.
Esse é o caso de Késia Aguiar. A estudante de 18 anos está inserida na Igreja Batista desde bebê, apresentada à comunidade com cerca de dois meses de vida. Mesmo que a igreja que frequenta faça uma releitura da festa católica sem adoração explícita ao Santo, Késia é assertiva quando diz não gostar de comemorar os festejos juninos. Para ela, por ser uma festa pagã, não faz sentido participar.
“Apresentar” criança na Igreja após o nascimento é um costume das religiões evangélicas. Késia foi apresentada com dois meses de vida
Foto: Acervo Pessoal
“Eu parto do princípio de que é uma festa. Se é uma festa, estão comemorando algo. Mesmo que seja só para curtir com os amigos, sempre tem uma origem e um significado”, explica a jovem. João Batista existe na religião em que segue, mas não pode ser celebrado da mesma forma. “Eu acredito que esse culto, essa exaltação e esse pedestal se deve só a Deus e a Jesus. Essa festa de São João Batista para mim não existe, eu não comemoro isso”.
Além disso, por conta do histórico sincretismo religioso no Brasil, que cria um paralelo entre o Catolicismo e religiões de matriz africana, São João Batista e Xangô se sincretizam não só pela simbologia similar, como a simbólica data do festejo junino: vinte e quatro de junho. O “Orixá da Justiça” do candomblé é cultuado com uma mesa farta onde o milho é principal. No geral, a maior parte das comidas típicas do festejo tem origem afro-brasileira. Canjica, mungunzá, pé de moleque e paçoca são alguns dos alimentos que surgiram no período colonial e carregam identidades indígenas e africanas em suas origens. Talvez, as comidas típicas também tenham sido sincretizadas com o tempo.
Em entrevista ao portal Brasil de Fato, a antropóloga Luciana Scanoni explicou que há festa no terreiro na mesma data. “Após essa noite de São João, em que as águas ficam mágicas, poderosas, no dia 24 é feito o culto a Xangô nos terreiros de umbanda e candomblé. Tem toda a sequência de entidades na linha de Xangô que descem naquele terreiro. E como é o aniversário de São João, em alguns terreiros é cantado ‘Parabéns’”.
Entre Xangô e São João, há um abismo de interpretações. Mas todas elas apontam para um só elemento, característico da época: a fogueira. Para quem chama de Colheita, a fogueira simbolizava a celebração da fartura. Para quem acredita em São João, foi o fogo que avisou à Maria o nascimento do Santo. No candomblé, é Xangô quem domina a chama da Justiça. O que há em comum é a fogueira como sinal de tradição.
Edição: Bernardo Maia e Leo Prado
Editor-chefe responsável: Bia Nascimento